Praça
Por Alice Sousa e Guilherme Conrado
"Um areial com um cacimbão no meio"
Praça do Ferreira, . Foto: Fortaleza Nobre/Reprodução
É assim que lembro daqueles tempos dourados. No mei do século XIX, era assim que me encontrava. Ao meu redor foi sendo construído o que, anos depois, se tornaria patrimônio histórico e cultural da cidade. Óia aí. Me tornar um símbolo da história do fortalezense? Eu não seria tão presunçosa.
Por volta de 1870, ganhei a alcunha de Praça do Ferreira, isso devido ao sucesso da botica de Antônio Rodrigues Ferreira, que virou ponto de encontro da população. Remontando meu passado e lembrando como tudo começou, resgato que em 1886 tinham quatro cafés em cada ponta minha: Iracema, Java, Café do Comércio e Café Elegante. Uma chiqueza só! Tinha até um povo que se reunia num desses. Eram uns tais de padeiros... Mas não faziam pão. Deixa pra lá.
Vivi muitas gestões de muitos prefeitos. Me lembro que em 1902 o intendente Guilherme Rocha mandou fechar o famoso cacimbão que tinha no meio do areial que eu costumava estar. Construíram o Jardim 7 de Setembro. Em 1920, Godofredo Maciel ladrilhou todo o meu piso, demoliu os cafés e derrubou o Cajueiro da Potoca. Era debaixo desse cajueiro que acontecia, religiosamente, todo 1º de abril, a eleição do cabra mais mentiroso dessa Fortaleza. Ainda sob gestão do seu Godofredo foi construído um coreto, onde o povo canta, mesmo no meu mei. Ah, e chegou uma mercearia que vende um pastel bom que só! Com caldo de cana, então...
Em 32, já na gestão de Raimundo Girão, ergueram a Coluna da Hora, um negócio de 13 metros de altura com quatro relógios, cada um deles voltado para um lado da praça. O negócio foi ficando mais arrumadinho, mais ornamentado. Foram colocando uns cateirozinho ali, um jardinzinho acolá… Fiquei bem uns 40 anos com esse visual.
Foto: Fortaleza Nobre/Reprodução
Praça do Ferreira, 1969. Foto: Fortaleza Antiga/Reprodução
Aí em 38, começou uma muvuca pra construir num sei o que... Outro cinema. Mas já não tinha tantos? Pra que outro? Esse era um tal de São Luiz, nome do dono... Enfim, ficou parada um tempão a obra. Uns 20 anos depois é que nasceu. E rapaz… vou te dizer. Era bonito, viu. E o povo que eu recebia era ainda mais elegante. Pense num negócio chique.
Quem não entrava no cinema, ficava só olhando, babando. Ora mais, num to dizendo mesmo? Frescura de não deixar o povo entrar. Ainda bem que mudou depois de uns anos. Se eu já morro de calor todo dia desse jeito, imagina quem anda pra cima e pra baixo de paletó? Deus me livre...
Em 68 eu fui radicalizada, a Coluna foi demolida e em seu lugar foi construído um Abrigo Central. Esse abrigo não durou muito não. Apesar do aumento de pessoas que vinham aqui me visitar, o abrigo passou a ser um “reduto de desocupados” e logo foi demolido.
Lá pras bandas de 91, eu começo a ter a cara que tenho hoje. Era no tempo do Juraci Magalhães. O projeto que me transformou no que sou hoje foi obra de Fausto Nilo e de Delberg Ponce de León. Hoje tenho uma versão mais moderna da Coluna da Hora. O estalado que ele dá toda vez que bate as horas já compõe o imaginário do Fortalezense. É como se, toda a história que eu passei, que foi resumida aqui, tivesse deixado referências e hoje elas compõem tudo no que eu me transformei.
Sabe aquele novo cinema que acabei de falar? Nesse mesmo ano, tavam dizendo em tombar o prédio. Logo me avexei. Iam derrubar o que ali de mim? Pensei que tombar era derrubar tudo. Mas não fizeram isso não. Parece que ninguém mais vinha ver filme, aí fecharam. Poxa, era tão bom lá…
Só foi voltar a ser como antes há uns anos atrás. Fizeram umas reformas. Ficou tão bonito quanto antes, com mais gente ainda, de todo tipo. Nunca sei o que passa lá dentro, mas quem sai de lá sai animado, feliz. Espero que não feche mais.
Foto: Felipe Mendes
Foto: Felipe Mendes
O nome Praça do Ferreira que eu ganhei é algo que já não cabe tudo que eu construí de memória na cabeça desse povo. E quer saber de uma coisa? Eu pertenço a eles. Eu pertenço a cada um que me ocupa por cada canto. O morador de rua que me escolhe como abrigo eu acolho como hóspede. Recebo todo dia centenas de pessoas que estão só de passagem ou que vêm pra ficar. E eu não me importo. Não faço distinção.
Rapaz, tenho orgulho de como me tornei democrática. Muito mais do que qualquer gestão. Quando eu era ponto de encontro da elite, tinha uma preocupação e uma manutenção dos meus cantos. Hoje sou condenada por abrigar quem anseia por um cantinho pra ficar, como se eu tivesse culpa da crueldade do mundo sobre as costas de quem me pede abrigo. Oxe. Tem medo deles? Tem medo de mim? Problema seu. Eu sou do povo. Eu sou o povo. Ninguém tira o Ferreira de mim.
Quer canto com gente mais classuda? Tem uma outra praça, mais pra lá da cidade, perto da praia… Até nome europeu tem. Vez ou outra alguém de lá aparece por aqui. Mas to bem com quem tá comigo sempre. Eles que me mantêm viva. Quem senta nos meus bancos por horas, só pra olhar quem passa. Quem corta caminho pelo bairro. Quem trabalha apoiado em mim. Têm uns que fazem uma zuada… mas eu aguento. Já acostumei. Até gosto. O movimento deles é o que me faz pulsar. Não sou eu que os sustento. Eles que me acordam, me levantam, cuidam de mim. Não me deixam morrer.
Meu corpo é do Ceará. Meu coração é de Fortaleza. Minha voz é do povo.