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TOPO
Plateia
Cícero Pereira
Engraxate
Ana Rosa (Joelma)
Vendedora Ambulante
Sarah Matias
Estudante
Maria da Silva
Moradora da Praça
Mauro Coutinho
Sonoplasta
CÍCERO
Por Felipe Mendes
Cícero Pereira, 67
Engraxate

“Isso aqui é cultura. Limpar sapato é cultura”

Seu Cícero começou a trabalhar na Praça do Ferreira em 1962. Naquela época, ainda menino, vendia jornais, mas conta que o lucro era muito pouco para sobreviver disso. Foi observando o movimento dos transeuntes que percebeu a possibilidade de um novo ofício: lustrar sapatos. Desde então, são mais de 55 anos tendo a Praça como seu local de trabalho. Viu e ouviu bastante, engraxou muitos sapatos, amadureceu, esquentou e esfriou a cabeça.

 

“Era todo dia. Tinha sessão até 23h. A última sessão, pra entrar, era 22h da noite. Entrava 21h30 pra sair 22h30, até 23h. A gente ficava nesses horários, muitos e muitos. Às vezes, ficava durante a noite porque não faltava cliente, aqui na Praça era cheio.”

 

Durante todos esses anos, só entrou no Cineteatro São Luiz duas vezes, ambas, há mais de 30 anos, quando o local ainda era apenas cinema, para ver filmes de super-heróis. Batman e Super-Homem fizeram parte da construção do imaginário de Seu Cícero, que vem de Caucaia, onde mora, para ganhar o sustento sentado em seu banquinho modesto de frente pro banco de madeira da praça, onde sentam as diversas figuras urbanas que lhe estendem os sapatos.

Apesar de trabalhar décadas exatamente em frente ao São Luiz, ele nunca conheceu Severiano Ribeiro, fundador do atual Cineteatro. “Na realidade, eu num cheguei a conhecer ele porque a gente que é um Zé ninguém, que vive pela praça, pra esse pessoal mais alto, gente que é importante, que vive acompanhado de segurança, a gente num pode chegar perto nem pra ver as pessoas.

 

Segundo Seu Cícero, “antigamente”, o movimento de pessoas era maior. "Naquela época, não existiam esses shoppings, o pessoal vinha tudo pra cá, mas agora não tão vindo tanto”. Para ele, os shoppings são os principais responsáveis pela diminuição do público. A criação de centros privados com lojas e cinemas tem diminuído a circulação de plateia por todo o Brasil. Apesar da diminuição do movimento, ele não considera a Praça do Ferreira um lugar perigoso. "O pessoal diz que é [perigoso]. Mas essa praça não é perigosa, não, todo mundo, eu vejo, se senta, fica à vontade. Não vejo vagabundo meter faca em ninguém, roubar. Perigoso, sabe onde é? É onde a pessoa chega e procura fazer mal aos outros".

ANA ROSA
Ana Rosa (Joelma)
Vendedora Ambulante
Por Adélia Farias

“De ônibus é melhor que a pé”

Ana Rosa gosta de ser chamada de Joelma. Uma vendedora ambulante de 51 anos muito bem humorada, daquelas pessoas que gostam de conversar de pertinho, ganha a vida na Praça do Ferreira. Joelma vende canjica, mas, naquele momento no qual a entrevistei, só tinha água no seu carrinho, literalmente, um carrinho de bebê. Desde seus 18 anos, é uma das pessoas que paga suas contas vendendo produtos na Praça. A última vez que foi ver um filme no São Luiz já faz tanto tempo que mal recorda o ano, mas lembra que foi de graça, e também quem atuava no filme: Bruce Lee.

O dinheiro que poderia ir pro ingresso de cinema, Joelma usa pra pagar a passagem do ônibus, do bairro Álvaro Weyne até a Praça. Geralmente, ela vai a pé, ou “de pé dois”, como prefere dizer. Conta que o acesso à Praça, por meio do transporte público, é bem fácil, em comparação com o de sua rota usual, se locomovendo a pé. De ônibus é melhor que a pé.

Joelma estava acompanhada do namorado na última sessão de cinema que foi no São Luiz. Ao ser questionada sobre o porquê de não ter ido mais ao Cineteatro depois do filme do Bruce Lee, respondeu “Porque agora o preço tá, assim, eu não tenho muito…” e faz aquele gestinho com os dedos que representa o dinheiro que lhe falta. Sorrindo. “Tem que ter carteira de estudante, normalmente, né… e o dinheiro pra entrar no cinema”, explica Joelma a sua ausência na sala de espetáculos. Diz que o preço do ingresso, 10 reais, é muito caro, e que a solução seria juntar todos os amigos pra irem juntos dividindo o preço dos ingressos.

“Afastou as pessoas mais ricas. Porque tem gente que não gosta dessas coisas, tem que ser uma coisa mais limpinha.”

Ela conta que as pessoas em situação de rua que moram na Praça do Ferreira assustam possíveis frequentadores do Cineteatro. “Muita coisa tá acontecendo na Praça, precisa de uma limpeza, tirar tudo que tá aqui”, diz, apontando pro local onde os moradores da Praça estão acomodados. Joelma diz também que a criminalidade no local afastou o público do São Luiz, mas um público específico: “Afastou as pessoas mais ricas. Porque tem gente que não gosta dessas coisas, tem que ser uma coisa mais limpinha”, explica. Segundo Joselma, o público de classes média e alta se incomoda com a "bagunça" que a população menos abastada faria nas sessões gratuitas e abertas à população. Supõe ser esse mais um dos motivos para que as pessoas de classe média frequentem o local apenas quando os eventos são pagos.

Ana Rosa gosta de ser chamada de Joelma. Não frequentou o Cineteatro depois da sua reinauguração. O dinheiro que ganha vendendo água e canjica é pra se sustentar e, o que sobra, ela usa pro luxo de pegar um ônibus, mas sorri quando lembra do filme do Bruce Lee que assistiu de graça com o namorado.

SARAH
Sarah Matias, 20
Estudante
Por Guilherme Conrado

“Eu passo aqui direto, mas, antes, era invisível, era só mais um prédio.”

 

Mesmo morando no Centro de Fortaleza há anos, Sarah nunca havia ido ao São Luiz. Quando criança, passava em frente com seus pais, que falavam “olha, o Cine São Luiz”. Era o máximo que conhecia do lugar. Só um prédio com um cinema desativado.

 

Com a comodidade dos shoppings, ir para a Praça do Ferreira somente para ver um filme não está nos planos dos jovens de hoje. Sarah acredita que a Praça é muito mais perigosa na boca do povo do que na realidade. Para ela, o São Luiz é um espaço importante para a cultura local, com uma programação excelente, mas que poderia ser mais bem divulgada. “Acho que quem tem mais acesso é quem tá na Universidade. Pro povo no geral, pra massa, não existe”.

 

Embora ache o preço do ingresso para o Cineteatro bem acessível, ela considera que o acesso físico ao local é dificultado pela falta de estacionamentos. O mais próximo é a alguns quarteirões, em direção à praia, com um valor, por vezes, tão caro quanto o ingresso. A alternativa que encontra - e prefere - é ir de ônibus ou de Uber. “O pessoal tem medo do local, considerado perigoso, e isso afasta o público”.

 

Nos últimos meses, Sarah ficou curiosa para conhecer o São Luiz por conta dos comentários dos amigos. Com as férias se aproximando, e um festival de cinema francês em cartaz, a vontade só aumentou. “Quero ver como é lá dentro. Tenho curiosidade sobre a arquitetura, principalmente.”

 

Após chegar atrasada para sua então primeira sessão, ela retornou dias depois, e conheceu o Cineteatro. Para ela, a experiência foi “incrível”, e a expectativa só aumentou para entrar novamente, como se fosse a primeira vez.

MARIA
Maria da Silva, 25
Moradora da Praça
Por Alice Sousa

“Eu acho que isso aí é errado, né? Porque morador de rua

também é humano, também merece respeito.”

Maria da Silva** possui uma voz imponente. Uma característica marcante é a firmeza nas suas palavras. É impossível não a ouvir, mas, mesmo assim, permanece invisível aos olhos dos transeuntes. Em meio a colchões, lençóis e crianças, ela é mais uma moradora da Praça do Ferreira. Inquilina há 3 anos. E digo “inquilina” porque não é gratuito morar ali. O preço a ser pago, dentre outra coisas, é ser tratado como um empecilho na ornamentação da praça. Ela faz parte da suposta “bagunça que não devia estar ali”.

 

Maria não quis falar sobre o que a fez ir parar ali, mas, três anos atrás, morava no bairro Panamericano. Não ficou confortável. Resumiu a problemas familiares.

A primeira vez que ela entrou em uma sala de cinema foi no Cineteatro São Luiz, depois que veio morar na praça. Foi há uns 3 meses. A experiência não foi muito boa. Ela não sabia que o filme era legendado e não estava entendendo a história, ficou mais pelo ar-condicionado. “Todo filme que eles botam aí é em inglês [legendado], porque eles sabem que ninguém aqui entende, aí a gente pega o beco é cedo” Ela me disse que “qualquer pessoa tem o direito de entrar ali no São Luiz pra assistir um filme”, mas ela mesma já sofreu, lá dentro, com olhares tortos e dizeres do tipo “Isso é um absurdo! Isso na rua, esses morador de rua aqui dentro!”. O mais estranho é pensar que um equipamento público, cuja a premissa é democratizar o acesso à cultura na capital,  tenha proporcionado duas ocasiões tão marcantes, porém distintas, na vida de Maria.

 

Talvez é porque tem uns limpos e outros sujos, né?…” é o que ela responde sobre os casos de preconceito sofridos no São Luiz. Maria não tem frequentado mais o espaço depois de episódios de descaso sofridos em apresentações no hall do cineteatro, ela preferiu se afastar, mesmo sabendo da importância do equipamento. “É bom, né? Quando pode entrar, é bom”.


 

** Nome fictício para preservar a identidade da fonte, que vive em situação de rua.

MAURO
Por José Henrique
Mauro Coutinho, 81
Sonoplasta

“Comprei um paletó exclusivamente pra ir ao São Luiz.”

 

Mauro Coutinho começou a trabalhar como sonoplasta aos 16 anos, na Rádio Iracema, localizada na praça José de Alencar. Ele foi um dos radialistas convidados para a sessão de imprensa que precedeu a inauguração oficial do São Luiz. O som era sua especialidade, e foi o que mais chamou sua atenção. Ele recorda de um filme em que havia “um trem, e a qualidade de som nos levava a acompanhar o trem o tempo todo na tela porque o som rodava o cinema”. Depois “eles demonstraram uma espécie de canoa dentro do rio, a água batendo, e a gente sentia, parece que a gente tava dentro da água, tamanha era a qualidade de som do São Luiz”.

Era um passeio de elite”, relembra. “A expectativa era tanto que, pra você ter uma ideia, no São Luiz só podia entrar de paletó. Você não entrava de traje esporte normal, era passeio completo”. Mauro comprou um paletó só para ir ao cinema, e gostava daquilo. “E era uma maravilha você ficar ali esperando entrar para a sala de projeção porque era um desfile de moda. Era uma coisa louca, linda.”

Da época, resta o saudosismo. “Antigamente você achava bonito e tinha um paletó pra ir com sua namorada, esposa, amigos, assistir um filme no São Luiz. E hoje você vem de bermuda e sandália nove horas da noite? Pelo amor de Deus… Isso é uma falta de respeito consigo mesmo.”

A segurança também é um fator de preocupação para ele, que costumava ficar até tarde da noite no Centro, bebendo café, tomando bananada, e diz que não havia perigo. A situação mudou. Mauro relata que já foi agredido próximo ao São Luiz. “Um cara com uma peixeira na minha barriga pedindo o celular. Oito e meia da noite.” Hoje ele tem medo de andar sozinho na praça durante a noite. “Você não sabe se as pessoas tão ali deitadas porque não tem onde morar mesmo, ou se são marginais esperando pra te agredir. Você não tem a noção. Como é que você vai se arriscar a sair do São Luiz dez e meia da noite? É muito perigoso.”


Mas o que mais faz falta é o som. “Nem longe o som é o mesmo. Passou nem perto”. Mauro conta que visitou o São Luiz na época das reformas, em 2014. “Como eu sou um homem de som eu disse ‘e o som?’, e me responderam ‘a gente vai tirar e vai botar tudo novo’.  Aí eu disse pro colega que tava comigo ‘acabaram o São Luiz.’. E foi só o que deu. No dia que eu fui lá pra ver o som do teatro, não vi o som do cinema. Vi o som de uma casa de show.” O sonoplasta não tem receios em afirmar: “perdeu a essência de quando [o São Luiz] foi inaugurado”.

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